quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O meu desejo é que os palestinos possam existir em paz.

No meio do caminho entre a pequena vila palestina de Kafr Qaddum e o assentamento israelense de Qedumim na Cisjordânia existe uma estrada bloqueada e uma casa. É exatamente nesse local que ocorre toda sexta-feira a manifestação pelo fim do bloqueio da rota que leva até Nablus1. O percurso que antes consistia em 1,5 Km é agora de 14 Km, não existe mais um caminho direto, é preciso contornar o assentamento2.

Semanalmente os moradores se reúnem em frente ao bloqueio da estrada e manifestam o seu desejo de passar livremente por ali. Os soldados fazem uma barreira para impedir o acesso ao assentamento, algumas vezes os palestinos atiram pedras, outras não, mas independente de qualquer coisa, sempre tem gás lacrimogênio, seja atirado manualmente seja atirado por uma espécie de arma em que a munição é uma capsula de alumínio que contém o gás3. A manifestação já é um folclore entre os integrantes do programa que participo, todo mundo já vai munido de máscara e cebola, preparado para ser atingido. Nós a acompanhamos a pedido da própria comunidade que sempre diz que quando não há internacionais a repressão é muito mais violenta.

Essa semana, além de participar da manifestação visitamos a casa palestina que fica de frente para o bloqueio, soubemos que a vaca da família havia falecido devido às contínuas doses do gás. Chegando lá a senhora nos abriu um sorriso e nos convidou para entrar, nesse momento nosso interprete não estava presente mas eu logo deduzi que "bakara" significa vaca em árabe; Raisa precisava falar e nós éramos os primeiros a ouvir. A visita tinha sido por causa da vaca, mas descobrimos que além dela algumas galinhas também haviam ido, assim como todas as abelhas da pequena produção de mel que eles cultivavam em casa.

- Como a senhora se sente a respeito das manifestações?

- Eu sofro duas vezes, uma porque as janelas e as portas não são bem vedadas então nós sempre acabamos respirando gás, e outra porque às vezes meus filhos participam da manifestação e eu tenho medo. Outro dia esse (apontando para o mais velho) foi atingido por uma dessas capsulas que eles atiram e teve a perna quebrada com o impacto.

Esses foram os primeiro relatos de cansaço e sofrimento de muitos outros que vieram em seguida. A família que hoje consiste em sete pessoas, o pai, a mãe, três filhas e dois filhos foi sucessivamente visitada pelos soldados israelenses. Uma vez no meio da noite um grupo de soldados invadiu a casa quando todos estavam dormindo. Eles acordaram com um rifle M-16 apontado para suas cabeças. Outra o filho foi preso ao retornar para casa, submetido a horas de interrogatório porque estava caminhando perto de um assentamento, ou melhor, estava perto de sua própria casa. Uma das filhas já foi ameaçada com uma faca no jardim, e a outra após sofrer com as “brincadeiras” dos soldados que ficaram jogando o jipe militar em cima dela para assuntá-la, acabou desistindo da faculdade. Ela não tinha mais coragem de sair de casa sozinha.

A mãe e os filhos estão claramente traumatizados, ela inclusive nos disse que às vezes só anda engatinhando dentro de casa por medo. Os Médicos Sem Fronteiras que possuem uma unidade em Nablus mandam toda semana um psiquiatra para acompanhar principalmente a mãe e o filho mais novo que não conseguem nem mais ver os soldados que ficam paralisados e começam a tremer inteiros.

Eu gostaria de dizer a vocês que esse é um caso isolado, mas não é. Não existe um palestino que eu tenha conhecido aqui que não demonstre uma expressão no mínimo cansada quando perguntando a respeito da ocupação, que não tenha pelo menos uma história para contar de abuso, humilhação e violência por parte ou dos militares ou dos colonos israelenses. É muito nítido que ninguém aguenta mais, os israelenses estão vencendo pelo cansaço e eu acredito que seja mesmo essa a intenção.

1  uma das cidades mais importes ao norte da Cisjordânia
2 todo assentamento israelense em território palestino é ilegal de acordo com o Direito Internacional Humanitário - http://www.diakonia.se/sa/node.asp?node=858
3  essa semana um manifestante foi morto por “tiro” da capsula de gás lacrimogênio. Como se não bastasse a tragédia, os soldados israelenses também presentearam com o mesmo gás as pessoas que foram ao velório do palestino- http://972mag.com/israeli-army-fires-tear-gas-on-mourners-in-nabi-saleh/29447/



                                                                 Preparada para a manifestação de mascara e tampão de ouvido. 

Bem no canto à direita, em frente à manifestação, se vê a casa da família que visitamos. Os telhados vermelhos ao fundo fazem parte do assentamento israelense de Quedumim. 

Nessa foto se vê a casa mais claramente. Essa estrada pela qual caminham os manifestantes é a que está bloqueada.  

As setas indicam a vila de Kafr Qaddum, o assentamento de Qedumim, e o início da estrada bloqueada onde está a casa da família palestina. (fonte: OCHA)

Dois soldados israelenses observam a manifestação de cima da montanha. 

Eu pedi para tirar uma foto da família e eles pediram para tirar uma foto comigo. Ai está. Da esquerda para a direita: A mãe, Raisa, a filha mais nova, eu, a filha mais velha, o pai, e o filho mais novo. 

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