terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O desafio de plantar e colher na Palestina.


A região de Tulkarem é bastante fértil, por aqui são incontáveis as plantações de oliveiras, laranjas, tangerinas e estufas para a produção de frutas, verduras e legumes de diversos tipos (Não! Não tem nada deserto por aqui! O clima é mediterrâneo). Muitos dos habitantes dessa parte da Palestina vivem da produção de suas terras, aqui não existem supermercados (pelo menos nessa região que estou), mas os pequenos mercados e feiras, bastante parecidas com as que temos no Brasil, funcionam a todo vapor todos os dias da semana. 

Como tudo na vida de um palestino é mais difícil, também é difícil plantar e colher em algumas situações. Por exemplo: se a pessoa não teve sua terra confiscada para a construção de algum assentamento judeu, ou para a construção do famoso muro (o que é a pior das possibilidades, porque você não verá mais nem a terra nem qualquer dinheiro por ela), ela pode ter terras próximas a esses assentamentos ou bases militares israelenses. Nesses casos são duas as dificuldades: a primeira são os próprios colonos que não raramente atacam as pessoas, cortam e/ou colocam fogo nas plantações e nas propriedades das redondezas; a segunda dificuldade são os soldados, que para “proteger os colonos”, amedrontam os palestinos, chegando até a prendê-los vez ou outra para que eles desistam de tentar cultivar aquele pedaço de terra próximo a esses locais. Isso também acontece porque Israel se utiliza de uma lei otomana de 1858 para confiscar essas terras. A lei que me refiro diz que toda terra não cultivada passa a pertencer ao Estado. 

Outra dificuldade bastante comum aqui na região que estou são as terras que ficaram entre a linha verde e o muro (essa área é chamada de Seam Zone). A linha verde que seria a fronteira entre o Estado de Israel e o Estado Palestino é ignorada pelo governo israelense, mas reconhecida por 126 dos 196 países membros das Nações Unidas (inclusive o Brasil). Cerca de 9,4% da Cisjordânia1 se encontra nessa situação. 25.000 palestinos vivem entre o muro e a linha verde, o que significa que alguns estão completamente isolados de suas vilas. Nesses casos é preciso permissão para receber visitas (já que elas necessariamente precisarão passar pelo portão) e até mesmo para sair de casa e voltar.

Um dos trabalhos que fazemos aqui é monitorar alguns desses portões agrícolas que permitem que os fazendeiros acessem suas terras no Seam Zone. Esses portões podem ser de três tipos: o diário que abre três vezes ao dia todos os dias da semana (os horários de abertura e a duração que o portão permanece aberto variam de portão para portão, mas o mínimo é 15 min. e o máx. é de uma hora); o sazonal que abre diariamente durante o período de colheita das azeitonas (do final de outro ao final de novembro); e o sazonal semanal que abre somente de uma a três vezes na semana, três vezes ao dia, somente durante o período de colheita. Para acessar essas terras não basta somente ser dono da propriedade ou ser contratado para trabalhar nela, primeiro é preciso preencher um formulário comprovando o seu status e esperar a permissão do governo israelense para cruzar o portão.

De acordo com o órgão palestino responsável por negociar com os israelenses a respeito das permissões, este ano de 2011, do dia 1º de novembro até o dia 13 de dezembro, foram solicitadas 6535 permissões aqui em Tulkarm, das quais foram concedidas somente 3312, ou seja, cerca da metade dos pedidos são recusados. Segundo o escritório palestino para assuntos civis, as pessoas que só trabalham mas não são os donos da terra, tem dificuldades com as permissões, da mesma maneira que aquelas que possuem propriedade em conjunto com outras pessoas. Nesse caso é preciso que somente um dos donos se responsabilize pela terra, e é somente essa pessoa que poderá ter acesso à propriedade, o restante dos donos são impedidos de passar pelo portão. Só para lembrar a vocês que o muro, que é ilegal de acordo com a Corte Internacional de Justiça, separa terras palestinas de terras palestinas.

- o problema não é exatamente o portão, o problema é a liberdade. Antes eu vinha com a minha família fazer piquenique, convidava os amigos para passar o fim de semana. Agora não posso mais fazer nada, nem convidar ninguém para tomar um chá ou café.  (Jalal nos disse isso após tentar insistentemente convencer os soldados israelenses a nos deixar passar. Ele ficou extremamente chateado quando o comandante impediu que visitássemos sua plantação).

1 Constituem a Palestina os territórios de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.

Feira em Tulkarm

Feira em Tulkarm

Portão agrícola.

Portão agrícola

Soldado israelense alisa a terra depois de fechar o portão. Eles fazem isso para ter certeza que ninguém passou por ali depois dos soldados terem ido embora. Os portões são abertos por no máximo uma hora, depois de fechados eles só serão abertos novamente na hora do almoço.

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Estufa com plantação de pimenta.  








segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Continuação da tragédia diária de uma família palestina.


Vou só colocar novamente umas fotos da família que visitamos sempre após as manifestações em Kafr Qaddum. Semana passada os soldados usaram o terraço da casa da família para atirar gás contra os manifestantes. Como eu já disse, essa família está bastante traumatizada, tem muito medo do exército israelense. Quando chegamos para falar com eles a mãe chorava muito, estava bastante assustada e triste. Eu infelizmente só pude dizer: eu espero que tudo isso termine um dia...

Foto tirada do terraço da família. Esses são cartuchos vazios de gás lacrimogênio disparados pelos soldados israelenses no dia 23/12/2011






Reunimos todos os cartuchos que estavam no chão para fazer essa foto. Os três recipientes negros são de gás disparado manualmente. 


Esse tanque de reserva de água foi derrubado pelos soldados israelenses propositadamente. 

Foto do assentamento israelense de Qedumim. E continuam as construções ilegais. Pelo que nos foi informado os israelenses tem trabalhado dia e noite.

A famosa barreira entre o assentamento e a vila palestina. Os protestos tem ocorrido para pedir o seu fim. 

Capsula de gás vista do terraço da família.

Capsula de gás vista do terraço da família.


Foto tirada pelo nosso fiel motorista. Raisa chorava muito e eu não sabia o que fazer. O primeiro impulso foi abraçá-la... e foi o que eu fiz. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O meu desejo é que os palestinos possam existir em paz.

No meio do caminho entre a pequena vila palestina de Kafr Qaddum e o assentamento israelense de Qedumim na Cisjordânia existe uma estrada bloqueada e uma casa. É exatamente nesse local que ocorre toda sexta-feira a manifestação pelo fim do bloqueio da rota que leva até Nablus1. O percurso que antes consistia em 1,5 Km é agora de 14 Km, não existe mais um caminho direto, é preciso contornar o assentamento2.

Semanalmente os moradores se reúnem em frente ao bloqueio da estrada e manifestam o seu desejo de passar livremente por ali. Os soldados fazem uma barreira para impedir o acesso ao assentamento, algumas vezes os palestinos atiram pedras, outras não, mas independente de qualquer coisa, sempre tem gás lacrimogênio, seja atirado manualmente seja atirado por uma espécie de arma em que a munição é uma capsula de alumínio que contém o gás3. A manifestação já é um folclore entre os integrantes do programa que participo, todo mundo já vai munido de máscara e cebola, preparado para ser atingido. Nós a acompanhamos a pedido da própria comunidade que sempre diz que quando não há internacionais a repressão é muito mais violenta.

Essa semana, além de participar da manifestação visitamos a casa palestina que fica de frente para o bloqueio, soubemos que a vaca da família havia falecido devido às contínuas doses do gás. Chegando lá a senhora nos abriu um sorriso e nos convidou para entrar, nesse momento nosso interprete não estava presente mas eu logo deduzi que "bakara" significa vaca em árabe; Raisa precisava falar e nós éramos os primeiros a ouvir. A visita tinha sido por causa da vaca, mas descobrimos que além dela algumas galinhas também haviam ido, assim como todas as abelhas da pequena produção de mel que eles cultivavam em casa.

- Como a senhora se sente a respeito das manifestações?

- Eu sofro duas vezes, uma porque as janelas e as portas não são bem vedadas então nós sempre acabamos respirando gás, e outra porque às vezes meus filhos participam da manifestação e eu tenho medo. Outro dia esse (apontando para o mais velho) foi atingido por uma dessas capsulas que eles atiram e teve a perna quebrada com o impacto.

Esses foram os primeiro relatos de cansaço e sofrimento de muitos outros que vieram em seguida. A família que hoje consiste em sete pessoas, o pai, a mãe, três filhas e dois filhos foi sucessivamente visitada pelos soldados israelenses. Uma vez no meio da noite um grupo de soldados invadiu a casa quando todos estavam dormindo. Eles acordaram com um rifle M-16 apontado para suas cabeças. Outra o filho foi preso ao retornar para casa, submetido a horas de interrogatório porque estava caminhando perto de um assentamento, ou melhor, estava perto de sua própria casa. Uma das filhas já foi ameaçada com uma faca no jardim, e a outra após sofrer com as “brincadeiras” dos soldados que ficaram jogando o jipe militar em cima dela para assuntá-la, acabou desistindo da faculdade. Ela não tinha mais coragem de sair de casa sozinha.

A mãe e os filhos estão claramente traumatizados, ela inclusive nos disse que às vezes só anda engatinhando dentro de casa por medo. Os Médicos Sem Fronteiras que possuem uma unidade em Nablus mandam toda semana um psiquiatra para acompanhar principalmente a mãe e o filho mais novo que não conseguem nem mais ver os soldados que ficam paralisados e começam a tremer inteiros.

Eu gostaria de dizer a vocês que esse é um caso isolado, mas não é. Não existe um palestino que eu tenha conhecido aqui que não demonstre uma expressão no mínimo cansada quando perguntando a respeito da ocupação, que não tenha pelo menos uma história para contar de abuso, humilhação e violência por parte ou dos militares ou dos colonos israelenses. É muito nítido que ninguém aguenta mais, os israelenses estão vencendo pelo cansaço e eu acredito que seja mesmo essa a intenção.

1  uma das cidades mais importes ao norte da Cisjordânia
2 todo assentamento israelense em território palestino é ilegal de acordo com o Direito Internacional Humanitário - http://www.diakonia.se/sa/node.asp?node=858
3  essa semana um manifestante foi morto por “tiro” da capsula de gás lacrimogênio. Como se não bastasse a tragédia, os soldados israelenses também presentearam com o mesmo gás as pessoas que foram ao velório do palestino- http://972mag.com/israeli-army-fires-tear-gas-on-mourners-in-nabi-saleh/29447/



                                                                 Preparada para a manifestação de mascara e tampão de ouvido. 

Bem no canto à direita, em frente à manifestação, se vê a casa da família que visitamos. Os telhados vermelhos ao fundo fazem parte do assentamento israelense de Quedumim. 

Nessa foto se vê a casa mais claramente. Essa estrada pela qual caminham os manifestantes é a que está bloqueada.  

As setas indicam a vila de Kafr Qaddum, o assentamento de Qedumim, e o início da estrada bloqueada onde está a casa da família palestina. (fonte: OCHA)

Dois soldados israelenses observam a manifestação de cima da montanha. 

Eu pedi para tirar uma foto da família e eles pediram para tirar uma foto comigo. Ai está. Da esquerda para a direita: A mãe, Raisa, a filha mais nova, eu, a filha mais velha, o pai, e o filho mais novo. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Impressões sobre a esquerda israelense


Logo na primeira semana que cheguei na Palestina fui visitar um Kibutz[1] que fica exatamente na fronteira com Israel. Seus residentes possuem uma relação de cooperação com os vizinhos palestinos e, o que é raro por aqui, respeitam a linha verde[2] . Durante a conversa o representante do Kibutz, que nos recebeu muito bem, explicou a história do lugar fundado por socialistas argentinos nos anos 50. Falou também da relação com os vizinhos, mesmo após cinco de seus membros serem mortos por um palestino durante a segunda intifada, e sobre como havia se dado a negociação a respeito da fronteira com os palestinos[3]...

Depois de algum tempo falando lhe fiz uma pergunta: Existem palestinos morando no Kibutz? Existem árabes na comunidade? A resposta me mostrou o tamanho do problema: 

- Sabe como é... os árabes tem muita dificuldade em viver nesse tipo de comunidade, eles não aceitam bem...

- (EU) Mas também existem árabes socialistas.

- é, mas veja, eu tenho um amigo palestino comunista, às vezes eu vou a sua casa para conversar e enquanto estamos conversando sua mulher nos serve café...

Talvez sem perceber ele fez exatamente o que toda sociedade israelense faz quando chama todos os palestinos de terroristas. Ele em nenhum momento disse que os palestinos eram terroristas, mas assinou embaixo de vários outros preconceitos e estereótipos ligados aos árabes. Em sua curta resposta ele deixou a entender que os palestinos não tem capacidade de formas alternativas de comunidade, o que é um absurdo. Afinal, ninguém nasce com um DNA apropriado para morar ou não em um Kibutz. O fato dos judeus terem fundados esse tipo de organização tem a ver com suas heranças históricas e culturais, que podem ser bastante diversas dos árabes em geral, mas dizer que eles são incapazes? Fora isso, não vou nem comentar o fato dele ter citado a mulher servindo café como uma prova de o seu amigo “não ser bem comunista”. 
Para completar minha desilusão com a esquerda israelense, tive a oportunidade de conhecer uma senhora que pertence a um movimento que, dentre outras coisas, monitora os checkpoints [4]. Depois de um tempo apresentando o seu trabalho ela soltou um:

- Se eu tivesse duas esposas e 17 filhos eu também ficaria desesperada nas filas dos checkpoints.

Bom, quem conhece um pouco dos árabes, como essa senhora que trabalha diretamente com eles deveria conhecer, sabe que casar mais de uma vez é exceção. O casamento múltiplo não é comum. Eu, por exemplo, não conheço nenhum que tenha duas esposas. Fora isso, os palestinos que eu conheço possuem em média 6 filhos, nunca vi nenhum com 17. Pode até ser que exista, mas sem dúvida não é a maioria. 

Conhecer essas duas pessoas me entristeceu. Como eu disse: eles são a esquerda israelense, são pessoas que querem a paz, que fazem por onde, mas que infelizmente não foram capazes de fazer a crítica sobre o que lhes foi ensinado sobre os árabes, mesmo convivendo com eles diariamente. O caminho a ser percorrido é muito maior do que eu imaginava.


[1] comunidades em moldes socialistas criadas logo no início da colonização israelense que hoje funcionam mais aos moldes dos países nórdicos
[2]  a fronteira entre Israel e a Palestina reconhecida pelo Brasil e por muitos outros países, mas que o governo israelense não respeita uma vez que grande parte do muro está construído em território palestino, além da linha verde.
[3] uma fronteira foi estabelecida após negociações diretas entre vizinhos palestinos e israelenses. Infelizmente o acordo é ignorado pelo governo israelense, visto que reconhecê-lo significa também estabelecer fronteiras.
[4] entrepostos militares que regulam a passagem de pessoas entre os dois lados do muro, principalmente do lado palestino para o israelense.



Kibutz israelense. Ao fundo se vê a Palestina.

Casas e plantação dentro do Kibutz. Ao fundo se vê uma vila palestina em território israelense.