segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Rito de passagem


Ele tinha 17 anos, aos 16 tinha sido preso, não ficou muito tempo, comparado com os outros. Foram 17 dias na solitária, provavelmente o tempo que ele demorou a assinar sua confissão, e mais 53 dias entre espera, acusação e pena. Mohammad era um menino que não sabia por que tinha sido preso de madrugada e mantido 20 dias sem contato com qualquer advogado, ou melhor, sabia, afinal era palestino. Sua sentença era, entre outras coisas menos graves, pertencer a Jihad Islâmica, grupo político considerado terrorista pelo governo israelense. Segundo ele, o seu único delito tinha sido entrar para um grupo de discussão sobre religião na escola onde estudava. Então era isso, ele era um terrorista, afinal, o único partido ou grupo político não considerado terrorista pelos israelenses é o Fatah, partido da Autoridade Palestina.
O menino falava muito pouco, estava tímido, segundo a mãe, que também possuía dois sobrinhos na cadeia e outro filho recém-saído, ele havia mudado depois da prisão, era finalmente um homem. Antes era muito arteiro, agora ficava mais no seu canto. De onde eu venho isso tem outro nome, trauma, pensei comigo. Mas, em um país onde quase todos os jovens passam pela cadeia1, o lugar é realmente um rito de passagem para a maioridade. A conversa começou estranha, ele não queria falar, e a única pessoa que entedia inglês, uma prima, ainda dava muitos tropeços na língua.
O que fizeram com você na cadeia? Sem me olhar nos olhos ele disse: fui interrogado durante 3 ou 4 horas ininterruptas durante os 17 dias que fiquei na solitária com uma luz que ficava acessa 24 horas e um aquecedor que nunca desligava, ameaçavam minha família. Queriam que eu confessasse ser da Jihad Islâmica, e eu nem sabia do que eles estavam falando. Depois me colocaram numa cela muito fria com mais 8 meninos, entre 15 e 17 anos.
Eu sabia que ele tinha confessado, afinal, não existia outra possibilidade, os israelenses costumam prorrogar a prisão das pessoas em casos de não confissão até que elas cedam. O sistema é o seguinte: os que confessam pagam uma fiança, geralmente de uns 3.500 reais, ganham uns dias de reclusão, e vão para casa; os que não confessam, ficam presos até confessar. A única diferença é que os que mais tempo resistem, mais tempo ficam na prisão. Não há escapatória. É por isso que eles têm um índice de quase 100% de confissão e condenação, coisas de democracia.
Perguntei se ele sabia que tinha saído uma grande reportagem na Inglaterra sobre a condição das crianças palestinas presas, onde ele era um dos entrevistados2. Mesmo? Vieram umas pessoas aqui faz um tempo, mas ninguém me disse nada, nem sei de onde eles eram, respondeu o menino. Foi uma reportagem muito boa, as pessoas ficaram indignadas, inclusive o governo inglês chegou a fazer uma declaração pública sobre o fato3, o que não é pouca coisa, falei. Ele se animou, e eu brinquei “você está famoso”, foi ai que eu finalmente vi um sorriso adolescente, ele estava orgulhoso.
Eu também fiquei orgulhosa, consegui passar um pouco de esperança para o garoto que vivia numa casa minúscula com toda a sua família num dos dois campos de refugiados da cidade de Tulkarm. Perguntei sobre a escola, acabei me metendo em um terreno complicado. Por conta da prisão ele acabou perdendo o ano e não quis voltar, pois teria que repetir a série e ficar longe dos colegas. Mas então, o que você vai fazer? Estamos tentando arrumar dinheiro, disse a mãe, porque numa escola particular ele pode fazer os dois anos de uma só vez, assim que conseguirmos o dinheiro ele volta a estudar. Olhei em volta, a casa era uma sala muito pequena, uma cozinha, um banheiro, e um único quarto, mas até que não era tão mal, eles tinham uma grande janela com vista livre, as outras casas de campo de refugiados que conheci não tinham esse luxo.

1 Todos os anos são cerca de 500 a 700 menores de idade presos pelos isralenses
2 Reportagem do “The Guardian” sobre os presos palestinos menores de idade: http://www.guardian.co.uk/world/2012/jan/22/palestinian-children-detained-jail-israel?INTCMP=SRCH

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O Difícil Retorno

Muita gente me pergunta a respeito da minha experiência na Palestina. Desde que cheguei, tenho tido muitas dificuldades em falar sobre isso. Falar dos Palestinos significa lembrar de pessoas que hoje são muito queridas e que estão sofrendo pelo simples fato de existir.  Quando me propus a ir até lá, eu sabia que quase nada eu poderia fazer para mudar os fatos, que a minha presença seria um mero paliativo; passar por esse processo, entretanto, é totalmente diferente de saber que isso ocorreria.  

Ler sobre a Palestina se tornou quase uma tortura. Jornais e revistas retratam o conflito de maneira totalmente equivocada. Primeiro, que eles mostram correspondentes estacionados em Tel Aviv, falando com propriedade do que se passa na Cisjordânia ou em Gaza1. Acontece que, morando em Tel Aviv, eles provavelmente só escutam as versões oficiais do governo israelense ou das organizações israelenses, que são, na sua maioria, totalmente enviesadas, para não dizer anti-palestinas. Seria o mesmo que colocar um repórter fixo em Gaza. Além disso, estar em Tel Aviv significa que você não tem qualquer contato com os territórios ocupados palestinos; existe não só uma barreira física entre eles2, como uma barreira psicológico. Só quem já foi à Palestina e a Israel sabe do absurdo que é ter um correspondente internacional que não transite entre as duas áreas.

Não sejam ingênuos de pensar que eles mesmos não sabem disso. Se eles não o fazem, é porque não querem mostrar a totalidade do conflito. Procure a respeito da libertação do soldado israelense Gilad Shalit, que você verá o nome dele estampado mil vezes, Enquanto os milhares de palestinos, inclusive crianças, que estavam e ainda estão em prisões israelenses,  não tem nome algum. Isso porque eles cometeram crimes bárbaros? 40% da população masculina palestina já passou pela cadeia ou segue encarcerada; nenhuma sociedade que possui um número tão grande de criminosos. Os palestinos não são diferentes nem de nós, nem dos israelenses3. Eu conheço gente que foi presa por hastear a bandeira palestina em cima de uma árvore; conheço até gente que foi presa e nem sabe o porquê (nesse caso, conheço muita gente).

Esses repórteres nunca conheceram (reparem que conhecer não significa ir lá pra dizer foi) a Palestina. Não existe a possibilidade de qualquer ser humano honesto ir à Palestina e retratar o conflito como uma guerra entre iguais, como eles fazem. Aliás, retratar o conflito como se fosse entre iguais já seria um avanço. Geralmente, esses repórteres tratam a questão como um conflito entre civilizados e incivilizados, em um cenário onde eles, os palestinos, atacaram os israelenses e, então, estes fazem uso da força para se proteger. Os palestinos lançam pedras e os israelenses se defendem com gás, armas, cães, bombas. Por que será que os palestinos lançam pedras? São malucos? Por que eles simplesmente odeiam os israelenses? Por que só os israelenses têm motivo para atacar? Pensem nisso.

E qual é o meu poder vendo todos esses absurdos? Nenhum. O máximo que eu posso fazer é escrever nesse blog, esbravejar minha raiva e minha revolta contra o Estado Israelense, contra a cobertura do conflito, etc... Que poder tenho eu? O problema que essa limitação de poder se reflete nos meus amigos que estão lá na Palestina, respirando gás lacrimogênio, tendo suas terras confiscadas, suas casas derrubadas, seus entes queridos presos, mortos. Assim a vida continuará, porque pessoas como a Nathalia não tem poder nenhum. Resta rezar, para aqueles que acreditam.


1Território palestino ocupado
2Um muro de 8 metros que não te deixa nem ver o outro lado


Esse é um vídeo feito em Kafr Qaddum. A mesma vila que eu tanto fui e acompanhei durante o meu período por lá. O cachorro do exército israelense ataca um palestino, e um outro palestino enfrenta os soldados para ajudar. Esse homem se chama Murad. Ele é uma pessoa muito querida por todos, e por esse vídeo já dá para se ter uma ideia do porquê. No final da gravação é possível ver que ele foi acabou sendo preso. A alegação era a de que Murad tinha atacado um soldado. Como as imagens são muito claras, o exército não teve como sustentar sua prisão, e ele acabou sendo liberado uma semana depois. Um caso raríssimo, uma vez 99% dos presos palestinos são condenados. Ver esse vídeo daqui do Brasil foi uma das experiências emocionais mais difíceis que eu já tive.



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"Nós escolhemos quem deve se retirar"


Por volta das nove da noite recebemos uma ligação de um dos nossos contatos dizendo que os colonos judeus do assentamento israelense de Qedumim tinham entrado com tratores nas terras palestinas de Kafr Qaddum (o próprio assentamento é construído sobre terras confiscadas de Kafr Qaddum) e haviam começado a planar a terra e a plantar oliveiras. Como era noite nos foi aconselhado que esperássemos até o dia seguinte. Antes não tivéssemos esperando. Pela manhã o pedido era para que fossemos direto para lá porque o exército havia chegado e alguns palestinos haviam sido agredidos. As próximas cenas foram das mais inacreditáveis da minha vida.

Quando chegamos ao local a situação era a seguinte: de um lado, protegendo a entrada do assentamento, estavam 20 soldados e dois seguranças particulares dos colonos israelenses, todos carregando seus M-16.  Do outro lado três palestinos estavam sentados na terra em frente aos soldados como forma de protesto, três mulheres palestinas estavam sentadas um pouco distante, e mais umas quinze pessoas incluindo internacionais e a imprensa palestina se encontravam lá para noticiar e oferecer presença protetiva para os donos da terra, todos completamente desarmados.

Depois de uns 15 minutos um homem pertencente à Autoridade Palestina chegou com os papéis que provavam a posse da terra. O soldado encarregado simplesmente lhe disse: vocês tem que entrar na justiça para provar que essa terra é de vocês, essa terra é do Estado de Israel.

Nesse meio tempo me foi dito que dois palestinos haviam sido agredidos anteriormente pelos soldados. Um homem por volta de seus 60 anos levou um golpe na cabeça, começou a sangrar e teve que ser encaminhado para o hospital. A segunda foi uma senhora de mais ou menos 70 anos. Ela foi agredida por uma soldada mulher ao tentar proteger o homem que estava apanhando do outro soldado.

Não bastasse isso, depois de mais meia hora, seis homens desceram de uma caminhonete com enxadas e picaretas. O meu pensamento foi: eu não acredito que os colonos voltaram. Pois sim, eram eles. Os palestinos começaram a gritar e os soldados foram para cima dos... palestinos! Enquanto os colonos começavam a trabalhar na terra e a plantar os soldados faziam uma barreira de isolamento para protegê-los! Sim minha gente. Os verdadeiros donos da propriedade tiveram que ficar assistindo os colonos israelenses trabalharem em suas terras com a proteção do exército.  Eu que pensava que grilagem de terra era o fim do mundo. Na Palestina nem falsificar os papéis é preciso, aqui basta só você ser judeu, acordar um dia querendo cultivar a terra dos outro e pronto! A terra é sua com o respaldo do Estado Israelense! Justiça divina é outra coisa!

Durante a encenação (digo encenação porque foi uma clara demonstração de quem tem o poder, não fazia nenhum sentido eles começarem a cultivar a terra naquele momento) o exército declarou o local onde estávamos como “área militar restrita” (ou algo como isso). Os palestinos responderam que só sairiam se os colonos também saíssem. A resposta foi: nós escolhemos quem deve se retirar. 

No momento da chegada. Essa indivídua da esquerda foi a responsável pela agressão a uma senhora de seus 70 anos. 

Marcas do trator. Acima se vê que foi aberto um pedaço da cerca para sua passagem.


Três mulheres da vila de Kafr Qaddum protestam sentadas sobre suas terras. Uma delas foi agredida no braço. 

Um dos homens da vila de Kafr Qaddum protesta em frente aos soldados israelenses. 

Colonos israelenses chagam ao cenário já tenso. Eles carregam ferramentas agrícolas. É possível perceber que eles organizam sua entrada antes de realmente "aparecer" para os palestinos. 

Depois de articular sua entrada eles começam a caminhar para o lugar onde os palestinos protestavam.

Reparem que os colonos já estão no canto à esquerda. Os homens de fuzil e trajes civis são seus "seguranças particulares". E os outros de uniforme verde-oliva são os seus "seguranças" pagos pelo estado. Eles formam uma barreira para impedir que os palestinos se aproximem dos colonos israelenses. 

Os colonos israelenses e seus seguranças particulares. É possível ver as marcas de trator no chão. 


Os seguranças se posicionam para garantir o cultivo tranquilo dos colonos em terra palestina. 

Neste momentos eles já estão mais afastados dos palestinos e dos soldados. 

A seta aponta para onde os colonos estão. Reparem que em seguida estão seus seguranças, e logo depois os soldados que fazem uma barreira para impedir que os palestinos avancem.

E os colonos cultivam tranquilamente a terra alheia. Um fato curioso é que eles plantaram algumas oliveiras. Ao que tudo indica o azeite de oliva terá o mesmo destino do hummus e do faláfel. Para saber mais: http://electronicintifada.net/blogs/ali-abunimah/hummus-and-falafel-are-already-israeli-now-theyre-coming-palestines-olive-oil-too


Todo o episódio foi filmado e fotografado pelos soldados israelenses. Só para vocês não esquecerem que a senhorita à esquerda foi a que agrediu uma senhora de idade para ser sua avó.


Aqui se vê mais claramente a distinção entre os soldados e os seguranças dos colonos israelenses, de trajes civis.

Momento em que outros palestinos e internacionais se juntam ao protesto e sentam-se na terra em frente aos soldados. À direita a imprensa palestina. 

Palestinos protestam sentados em frente aos soldados israelenses. 

Momento em que os palestinos apresentam os papéis que comprovam a posse da terra e o soldado lhes diz que eles devem agora entrar na justiça para comprovar o que já está escrito. Segundo ele "essa terra é do Estado de Israel".

E a filmagem continua... Algumas vezes essas filmagens são usadas para incriminar os palestinos ou simplesmente para treinar os próximos soldados em como agir (ou não) em situações que envolvam colonos. 





quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quando a morte não é o fim, é a continuidade.


Passeando alegremente pelas ruas de Nablus em busca do meu primeiro knafe (doce típico dessa região da Cisjordânia) tive meus devaneios açucarados perturbados por uma foto antiga, num pôster novo e bastante grande. Olhei para um dos palestinos que trabalha conosco, e perguntei se o homem na foto havia sido solto na troca de prisioneiros pelo soldado israelense Gilad Shalit. Ele respondeu:

- Não, esse é um mártir que foi liberado em agosto.

- Como assim?

- Hafiz Abu Zant morreu em combate em 1976, mas seu corpo foi recolhido e mantido pelos israelenses até agora (Ago. 2011).

Demorei bastante para entender o que me havia sido dito. Não passava pela minha cabeça a ideia de manter os corpos das pessoas. Ingenuidade a minha pensar que morreu está morrido, acabou. Fiquei tão impressionada que comecei a pesquisar.

Bom, a história é a seguinte, o governo israelense se dá o direito1 de manter os corpos daqueles indivíduos que eles consideram “terroristas”2. Tanto aqueles que foram mortos em combate ou emboscada, quanto os que morreram durante o cumprimento de sua pena, ou seja, morreram na prisão. Estes são enterrados nos tais “cemitérios de números” que ficam dentro do território israelense e são inacessíveis a qualquer pessoa, seja ela da família ou não. Só alguns militares israelenses tem acesso aos registros que mostram qual número corresponde a tal pessoa. Lá os corpos estão enterrados a apenas 50 cm da superfície e, pelos relatos que tive acesso, parece que não existe nenhum cuidado contínuo. Inclusive um dos dois únicos corpos liberados até hoje (o outro foi Hafiz Abu Zant, citado acima), Mashour Talab Saleh, precisou passar por uma longa triagem de DNA para separá-lo dos demais corpos que estavam misturados na mesma cova.  

Até o dia 15 de janeiro de 2011 de acordo com o coordenador da campanha para a devolução dos corpos, 345 corpos estão em poder dos israelenses. Dentre eles 24 são cidadãos jordanianos, 2 são marroquinos, e os outros são todos palestinos e palestinas (pude contar no material que me foi dado oito mulheres).

O meu ponto aqui não é discutir quem é terrorista ou não. Porque não é essa a questão, a questão é: o indivíduo morreu, quem sofre com a falta do corpo é a família. Que culpa tem a família nessa história? Porque prolongar o sofrimento das pessoas por anos? Ainda mais numa situação tão tensa como essa? Eu com meus bons sentimentos não consigo entender essas coisas. Aliás, racionalmente eu entendo que eles queiram punir as famílias pelo que os seus filhos fizeram, mas pra mim existe limite moral, não aceito3.


1 O mantenimento dos corpos e a forma como eles são mantidos pelo governo israelense violam algumas convenções internacionais como por exemplo: Conveção de Haia de 1907; 1ª Convenção de Genebra de 1949: artigo 15, artigo 17; 2ª Convenção de Genebra de 1949; 3ª Convenção de Genebra de 1949; 4ª convenção de Genebra de 1949; Primeiro Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional: artigo 34; Segundo Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional.

2 Não vou entrar no mérito do que é considerado terrorista ou não pelo governo israelense porque qualquer palestino lutando ou pensando em lutar é considerado terrorista por eles, mesmo que seja defendendo seus próprios direitos. Vale lembrar que muitos dos que lutaram por Israel e mataram pessoas são considerados heróis e enterrados com horarias.



Knafe, delícia maravilhosa!

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Abdul Fattah Mohammed Ali Badeer, de Tulkarm. Morto em 1975 perto de Jericó, sua mãe morreu no final de 2011 sem concretizar o sonho de enterrar o próprio filho.